Com esposa enfrentando doença rara, morador de Rondônia que comemorou a vitória de Donald Trump é deportado dos EUA
Família de Presidente Médici viveu ilusão do “não será comigo”
Há seis meses, o brasileiro Rafael*, de 36 anos, comemorava a vitória de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. “Acho que ele vai mandar muita gente embora, fazer uma boa limpa”, antevia. Para seguir: “E eu concordo com isso, porque tem muito criminoso que vem de outros lugares. Mas eu não (vou ser deportado), porque eu não tenho nenhuma ocorrência policial. Nem aqui, nem no Brasil. Sou trabalhador”.
Imigrante sem documentos, Rafael vivia com a mulher, Soraia*, e o filho de 4 anos do casal em Deerfield Beach, na Flórida. Trabalhava na construção civil, por diárias de cerca de US$ 200, e apostava que Trump seria capaz de aumentar a oferta de trabalho e reduzir a inflação.
Evangélico, dizia que o republicano protegeria famílias como a sua: “Ao contrário da esquerda, que defende ideologia de gênero”.
Seis meses mais tarde, Rafael mora em Presidente Médici, um município de pouco mais de 18 mil habitantes na região central de Rondônia. Agora, ocupa um quarto na casa de madeira e sem ar-condicionado que pertence à sogra, uma aposentada de 74 anos. A alimentação da família tem sido garantida pela aposentadoria do pai de Rafael.
Diante da nova realidade, ele nem sequer quis falar ao portal UOL. A pedido da família, seus nomes foram trocados para proteger suas identidades.
“Ele está muito abalado, a gente realmente não esperava o que aconteceu”, contou Soraia. “Ele não é de chorar, mas fica calado, andando pelos cantos da casa.”
Alguns dias antes da nova gestão Trump completar cem dias, Rafael, Soraia e o filho foram deportados do país. E, se o governo do republicano ainda patina na promessa de gerar empregos e baratear preços, o que o presidente tem cumprido é a única promessa em que Rafael não acreditou —e a que mudou completamente sua vida.
Nos últimos 6 meses, a família contou ao UOL sobre as batidas do ICE, a sigla em inglês para Imigração e Alfândega dos EUA, que se intensificaram na Flórida e eram acompanhadas em tempo real por Rafael em grupos de WhatsApp, com fotos e localização.
O casal passou a frequentar reuniões da igreja nas casas dos membros, e não mais em um salão público, para evitar fiscalizações migratórias em templos, autorizadas por Trump. Ele vinha evitando dirigir. Nada disso, porém, foi suficiente para impedir seu retorno forçado ao Brasil.
“O pessoal do ICE marcou uma reunião numa quarta-feira de manhã, a gente achou que fossem falar algo do nosso processo (migratório), como já tinham feito antes. Mas não. Quando chegamos lá, eles disseram que estávamos sendo deportados, tomaram nossos celulares e nunca mais voltamos pra nossa casa. O carro ficou parado ali no estacionamento mesmo. Em 48 horas, já estávamos no Brasil”, relata Soraia.
A Justiça dos EUA negou reiterados pedidos de asilo da família brasileira.
Segundo Soraia, ao longo da viagem, eles foram tratados com educação pelos agentes, e não faltaram alimentos. Como eram um grupo familiar, Rafael não foi algemado durante o voo, como aconteceu com os demais brasileiros adultos e solteiros deportados no mesmo avião fretado.
Há quase um ano, antes mesmo que Trump vencesse as eleições, Rafael era monitorado por uma tornozeleira eletrônica do ICE.
“Se eu soubesse que ia ser assim, teria dito pra gente arrancar a tornozeleira e sumir, não colaborar mais com as autoridades. Cheguei a pensar em mudar de Estado, para um mais favorável aos migrantes, mas ele não queria”, conta Soraia.
O desespero de Soraia não se explica apenas pelo fim do sonho de prosperidade que os EUA representavam. Ela sofre de uma doença rara, autoimune e crônica, e, na Flórida, fazia parte de uma pesquisa científica com um tratamento experimental, que vinha mantendo o quadro sob controle.
O médico responsável pelo estudo chegou a enviar uma carta para as autoridades dos EUA para dizer que Soraia “está sob meus cuidados devido a uma doença muscular imunológica grave que requer tratamento rápido e crônico e sem o qual a paciente pode ser gravemente afetada e levada à morte”.
Agora, Soraia espera uma consulta pelo SUS com especialistas, mas não há previsão para o atendimento. A médica que a atendeu no hospital público em Presidente Médici jamais tinha ouvido falar da doença que a acomete e precisou pesquisar no Código Internacional de Doenças (CID) para se certificar de que a enfermidade de fato existia.
No dia da entrevista ao UOL, feita por vídeo, Soraia já exibia feridas ao redor dos olhos, um dos sintomas da recidiva da doença, que na fase aguda a fez emagrecer quase 20 quilos, ficar careca e sem condições de andar.
‘VIROU UMA CAÇA’
O caso da família de Rafael é particularmente dramático, mas está longe de ser único na comunidade brasileira nos EUA.
Segundo a estimativa mais recente do Instituto Pew Research, com base no censo americano, há ao menos 230 mil brasileiros vivendo de modo irregular no país.
Ainda que não possam votar, muitos imigrantes brasileiros sem documentação apoiaram abertamente Donald Trump e fizeram campanha em favor dele em suas comunidades.
Mesmo diante da promessa do republicano de realizar “a maior deportação da história do país”, para, nas palavras dele, expulsar os estrangeiros que “estão envenenando o sangue dos Estados Unidos”.
A surpresa entre os brasileiros trumpistas ao se ver como alvo das medidas do político que apoiaram é generalizada.
“Eu não imaginei que seria assim, não. A gente é de direita, mas nunca concordou com o modo como ele está tratando a questão de imigração. O que a gente vê é abuso. Ele está pegando criança, moleque de 19 anos, sem passagem criminal, que estava indo trabalhar”, afirmou ao UOL um brasileiro trumpista, imigrante sem documentos, que vive na região metropolitana de Boston (Massachusetts), e preferiu não se identificar pelo risco de deportação.
Confrontado com frequência por outros membros da comunidade brasileira por sua opção política, ele se defende citando os baixos números de deportados na primeira gestão de Trump, entre 2017 e 2021, e relembrando que parte da campanha republicana dizia que o alvo das ações anti-imigração seria apenas aqueles que tivessem algum registro de crime prévio.
Depois da eleição, porém, a Casa Branca já afirmou que considera como criminosos qualquer pessoa que tenha cruzado a fronteira entre México e EUA sem visto.
“Acho que ninguém imaginou que chegaria nesse nível. Como no primeiro mandato ele falou que ia deportar, mas foi o que menos deportou, todo mundo pensou que era mais uma falácia. Antigamente, você sabia que estava em risco se fosse pro Maine ou New Hampshire, que são Estados que trabalham com o ICE, mas agora eles estão caçando. O ICE está parado na esquina de casa, virou uma caça, e o foco está sendo o trabalhador”, explica o brasileiro.
As batidas do ICE, eventualmente com agentes de rostos cobertos e sem identificação visível, têm apavorado comunidades latinas.
Segundo dados do próprio órgão, graças a parcerias com equipes policiais locais e agentes das forças armadas, o ICE triplicou as forças-tarefa em busca de migrantes em abril de 2025 em comparação a dezembro de 2024, o que impactou as comunidades.
“As pessoas mudaram significativamente o dia a dia delas. Tem gente que tirou o filho da escola pública, que deixou de dirigir para não ser parado em blitz, que mudou de trabalho para locais que permitam rotas de fuga em caso de batida do ICE”, afirma Vinicius Rosa, diretor de expansão da Legacy Imigra, uma consultoria especializada em processo de imigração que possui 18 escritórios nos EUA.
Segundo Rosa, a empresa hoje atua no caso de milhares de imigrantes, a maioria brasileiros —e a demanda pelos serviços dobraram desde o início da gestão Trump.
Baseado em Utah, um dos Estados mais conservadores do país, Rosa estima que quatro em cada cinco brasileiros clientes apoiaram de alguma forma a candidatura Trump.
“Eu vejo neles indignação e susto, mas a verdade é que o Trump falou que faria isso. Ele só está executando um plano de governo, mas as pessoas não acreditaram. O brasileiro está acostumado com o jeitinho, sabe que entrou no país de forma desonesta. Se vê como honesto e pagou pra ver”, diz
Entre os migrantes latinos, histórias como a de Rafael e Soraia se repetem.
Eleitora de Trump, a migrante cubana Liyián Pérez viu recentemente a deportação do próprio marido e relatou ao jornal argentino La Nación que achava que Trump miraria “apenas em criminosos”. Residente legal no país, ela relata estar tendo dificuldade para sustentar a si e aos filhos sem o parceiro.
NÚMERO DE DEPORTADOS É CONTESTADO
A gestão Trump divulgou que 135 mil pessoas foram deportadas nos primeiros cem dias, o que equivaleria a mais da metade do que o ex-presidente Joe Biden deportou no ano anterior inteiro, mas essa informação é contestada com base nos próprios registros públicos.
A Transactional Records Access Clearinghouse (TRAC), órgão ligado a Universidade de Syracuse que compila os dados sobre migração no país desde 1989, afirma que as estatísticas oficiais em relação ao período apontam para 72 mil migrantes retirados dos EUA —um ritmo semelhante ao dos 12 meses anteriores ao início do mandato do republicano.
Desde o começo do novo governo Trump, o Brasil vem recebendo voos fretados pelos EUA a cada 15 dias, com dezenas ou mais de uma centena de brasileiros removidos do país. Trata-se de um aumento em relação ao período Biden, quando na média o país recebia um avião a cada 3 semanas.
Foi em um desses, em abril, que a família de Rafael desembarcou, em Fortaleza. Agora, Soraia e Rafael procuram empregos para tentar reconstruir a vida e quitar a dívida de R$ 50 mil com o coiote —o responsável por conduzi-los na travessia da fronteira entre México e EUA.
“Vamos ter que recomeçar do zero. Aliás, abaixo do zero”, diz Soraia, enquanto relata o choro do filho que deixou para trás os carrinhos de controle remoto e os donuts de que tanto gostava na Flórida.
Na foto que ainda mantém no Whatsapp, Soraia aparece sorridente com o filho e o marido na virada do ano, na Flórida. Nas camisetas dos três, os dizeres “2025, ano profético”.
“Eu esperava que grandes coisas aconteceriam conosco, mas não isso”, diz Soraia.
A mensagem de perfil é mais reveladora sobre seu atual estado de espírito: “Senhor meu Deus, não desista de mim”.
Fonte: folhadosulonline